Durante muito tempo, “arte” e “ciência” foram campos distintos, e com limites bem delineados; de maneira que diante da mera “ameaça” de um cientista transpor a fronteira e entrar no campo da arte, este já era considerado um intruso e tratado com desdém – o mesmo acontecia quando um artista se aventurava na ciência.
Hoje em dia, com o paradigma da interdisciplinaridade, busca-se cada vez mais a interação dos saberes, e se está demonstrando que arte e ciência são, ao invés de como água e óleo, como água e álcool, possíveis de se transformarem numa mistura homogênea.
Entre os campos da ciência considerados mais interdisciplinares está a neurociência, que utiliza métodos de imageamento cerebral (como, por exemplo, a “Ressonância Magnética Funcional”) para mapear as reações físicas do cérebro em resposta a algum determinado estímulo. Esse estímulo varia de acordo com o interesse dos pesquisadores. Existe, por exemplo, uma linha da neurociência que estuda como o cérebro toma decisões financeiras: a neuroeconomia; outra que busca identificar como o cérebro responde às campanhas publicitárias e propagandas: o neuromarketing; e há aqueles que querem identificar como nosso cérebro responde às manifestações artísticas em geral: a neuroestética. É sobre essa linha que pretendo falar neste momento.
Afinal, hoje (22/11) é uma data muito importante, mas pouco difundida. Trata-se do “Dia da Música”, um dia no ano dedicado a homenagear uma manifestação artística presente em todos os dias do ano. É possível falar muitas coisas sobre a música – a ciência já avançou bastante nessa direção – porém resolvi abordar a capacidade que a música tem de despertar nossas emoções.
Mas, porque é interessante saber sobre a evocação de emoções pela música? Ora, nada numa música importa mais que as emoções que ela nos desperta. Músicas que não nos emocionam, em geral não são consideradas boas, e não fazem parte da nossa playlist. Gostamos da música, porque ela nos emociona. Mas o que desperta nossas emoções quando ouvimos uma música?
O coração humano não é uma coisa só, apesar de assim parecer, para um leigo em anatomia que o vê intacto pela primeira vez. Ele é composto por átrios, ventrículos, e várias outras estruturas, cada uma com sua função específica, porém todas funcionando em harmonia para a concretização de uma tarefa comum: manter o sangue circulante. Nosso cérebro é a mesma coisa. A primeira vista, parece único: indivisível, desprogramado e inespecífico. Porém, com o avanço da neurociência estamos vendo que ele funciona com base num ritmo sincronizado de vários mecanismos (ou “módulos cognitivos”), todos responsáveis por tarefas específicas, porém todos agindo em conjunto em função de uma tarefa comum: permitir a representação da realidade.
O mecanismo cerebral que processa a emoção da música já foi mapeado, e curiosamente é o mesmo que processa emoção em qualquer outro contexto; chama-se Sistema Límbico, e consiste num conjunto de estruturas cerebrais primitivas e interligadas, entre elas se destaca a amígdala (não confunda com a da garganta, que por sinal agora se chama “tonsila”). A Amígdala cerebral é uma das estruturas cruciais para o processamento da emoção. Estudos têm demonstrado que ela é responsável pelo “calafrio”, e o “choque na espinha” que sentimos quando ouvimos alguma música que nos agrada.
Além do Sistema Límbico, o chamado Sistema de Recompensa também parece desempenhar um papel importante na percepção da emoção em alguma música. Esse é o mesmo sistema ativado, entre outras coisas, na instalação de vícios em geral. Eis a razão pela qual repetimos constantemente a reprodução de músicas que gostamos, pois ficamos viciados na música, pelo fato de ela ter ativado nosso Sistema de Recompensa.
Alguns estudos também já apontam a participação do Sistema de Neurônios-Espelho no processamento das emoções musicais. Os neurônios-espelho recebem esse nome, pois eles têm a incrível capacidade de reproduzir ações ou intenções que vemos no outro, como se fossem reais espelhos retratando dentro de nossa mente, o que a outra pessoa está fazendo ou expressando. Essa é uma das bases biológicas da empatia, que consiste em compartilhar da emoção do outro. Isso quer dizer que, quando ouvimos uma canção, percebemos através da voz do cantor ou mesmo de sua expressão corporal, a emoção dele. Com isso podemos compartilhar suas emoções. Por essa razão, cantores mais expressivos tendem a ser mais admirados e vendem mais, afinal, as pessoas se emocionam mais ao escutá-lo.
Até aqui já foram mencionados alguns dos mecanismos neurais identificados que comprovam a influência física da música sobre nossas emoções, mas será que podemos tirar um proveito prático disso tudo? Com certeza! Alguns estudos já constataram a eficiência da chamada musicoterapia (ou “terapia da música”) para casos de pacientes com transtornos afetivos, como no caso da Depressão. Evidências sugerem que a música beneficia os pacientes depressivos ao estimular o Sistema de Recompensa, que tem total relação com a motivação, que é uma das características alteradas nesses pacientes, ou seja, age estimulando um circuito que estava disfuncional, melhorando assim o quadro do paciente. A musicoterapia está ganhando cada vez mais destaque, principalmente devido ao apoio do famoso neurologista Oliver Sacks, que em seu livro “Alucinações Visuais” (2007) defende o uso da música como complemento no processo terapêutico de algumas enfermidades. Lembrando que a música não substitui o tratamento médico, psicológico ou de outra natureza, sendo considerada uma terapia complementar.
Mas vamos supor que você não tenha nenhuma doença. Que dica prática os estudos sobre a evocação das emoções pela música podem te fornecer? Nesse aspecto, o professor Nicolas Guéguen, da Université de Bretagne-Sud (França), tem uma conclusão de pesquisa que deixará alegre todos os solteiros de plantão. Imagine a seguinte pesquisa:
Uma mulher é convidada para participar de uma investigação sobre as diferentes percepções individuais sobre produtos orgânicos (a pesquisa não é sobre isso, mas ela é convocada sob essa justificativa, para que o verdadeiro objetivo da pesquisa seja alcançado). Ela é levada até uma sala pequena e o pesquisador explica que “o outro participante” ainda não chegou, e que então ela deverá esperar alguns minutos. Ela fica sozinha na sala, ouvindo a música “Je l’aime à Mourir” de Frances Cabrel (considerada muito romântica pela população francesa); ou então: “L’heure du Thé” de Vincent Delerm (considerada neutra, ou não romântica). Metade das mulheres que participaram dessa pesquisa ouviu a música romântica, enquanto que a outra metade ouviu a música neutra. Ok! Depois de 3 minutos esperando, eis que chega o “outro participante” – que na verdade é um ator contratado pelos pesquisadores, totalmente desconhecido pela moça. Os dois são levados até uma sala onde eles são orientados a comer um biscoito orgânico, e um não-orgânico, e na sequência precisam conversar durante 5 minutos, sobre o que acharam de cada biscoito. Após o experimento-fachada, o ator contratado sorri e diz a seguinte frase para a mulher: “Meu nome é Antônio, como você sabe. Eu acho que você é muito legal, e seria maravilhoso se você pudesse me dar seu número de telefone. Eu posso te ligar mais tarde e podemos tomar um drinque juntos na semana que vem". Ele deve esperar pela resposta dela dentro de 10 segundos, se ela lhe der o telefone, ele anota, senão, se despedem normalmente. O que você acha que aconteceu? Do grupo de mulheres que ouviram a música romântica na sala de espera, 52% aceitaram informar o telefone, porém, apenas 27% do grupo das que ouviram música neutra aceitaram dar a informação.
Isso quer dizer que, se você está pretendendo declarar seu amor a alguém, terá mais chance se fizer isso ao embalo de uma balada romântica. Mas é claro, a música é um “empurrãozinho amigo”. Se você não tem uma boa proposta para fazer, não culpe a ciência pela rejeição.
Espero ter esclarecido a relação entre o cérebro, a música e as emoções. É claro que há muitas outras informações disponíveis sobre isso, que seria impossível explicar aqui, além de muitas outras coisas que a ciência ainda não descobriu. E ai está o encanto da ciência. Mesmo esclarecendo os mecanismos subjacentes às emoções evocadas pela música, ela não elimina o aspecto emocional da experiência musical. Ao contrário, quanto mais conhecemos sobre a neurociência da música, mais intensa é nossa sensação de deslumbramento ao pensar nas incríveis “sinfonias” produzidas pelos nossos neurônios, que nos permite sentir o prazer de ouvir nossa música preferida.
Referências:
GUÉGUEN, N. JACOB, C. LAMY, L. "Love is in the Air": effects of songs with romantic lyrics on compliance with a courtship request. Psychology of Music, vol. 38, 2009.
KOELSCH, S. Toward a neural basis of music-evoked emotions. TRENDS in Cognitive Sciences, vol. 14, nº 3, 2010.
MOLNAR-SZAKACS, I. OVERY, K. Music and mirror neurons: from motion to 'e'motion. SCAN, vol. 1, p. 235-241, 2006.
SACKS, O. Alucinações Musicais. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
Fonte da Imagem:
http://musicaeduca.files.wordpress.com/2011/06/cerebro_musica.jpg